Por: Douglas Nnnes em 08/2014 - Visitas: 2821
Conto premiado no Concurso Literário do Centenário do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Piauí em Setembro de 2009.
Autor: Douglas Nunes
Naquele dia trabalhei até tarde da noite. O meu turno, no escritório, terminava por volta das vinte horas, mas as horas se estenderam muito. Eu deveria dar continuidade ao meu relatório do balanço da Empresa para apresentar ao administrador pela manhã. Além da chuva torrencial que caia,o dinheiro do ônibus se acabara e não vendo outra solução considerei que a melhor seria dormir no local de trabalho.
Eu até que gostava; sentia-me livre da lotação dos ônibus e naquele horario o trânsito se tornava muito difícil e também porque eu poderia cativar a doce Lucinda que trabalhava como garçonete no bar de seu Alarico.
A chuva caía insistentemente desde o início da noite sem previsão de parar. Por volta das vinte e duas horas desci até a lanchonete de seu Alarico, para tomar uma dose de café e rever Lucinda que sempre se distraía com a minha presença. Seu sorriso brejeiro e as reclamações de seu Alarico faziam dela uma conquista difícil. Porém, ela tinha um jeito todo especial que muito me cativou; seu sorriso doce mostrava seus dentes alvos como a neve. Ela sabia de minhas reais intenções, mas até então permanecia sem me dar muito zelo. Depois, mesmo com sua distração eu retornava satisfeito ao trabalho.
Uma das janelas do escritório dava para o cemitério do outro lado da rua, enquanto a janela lateral abria-se para uma capoeira circundando todo o prédio, num aspecto carregado e ao mesmo tempo intimidante. Ali os marginais se ocultavam para praticarem assaltos, tornando aquele local quase deserto. Era comum os casos de assaltos e até de morte. A polícia fazia o possível para prender os meliantes mas não havia sucesso e os marginais permaneciam aterrorizando a população.
Porém, aquela noite reservaria lances inesperados para todos nós. Ocorrências das mais infelizes, trazendo desassossegos e inquietações para a população que labutava diariamente em busca de seus afazeres. Foi por volta das vinte e três horas que ouvi gritos vindos da rua lateral. O bar de seu Alarico havia sido atacado e roubado por alguns indivíduos das redondezas.
Fiquei desesperado. Como estaria Lucinda?
Desci correndo as escadas e logo soube que trancaram os dois no banheiro nos fundos do bar enquanto depenavam o bar e objetos de frequentadores. Levaram até a máquina registradora, além de suas parcas economias escondidas sob o balcão. Soubemos depois que os mesmos assaltantes roubaram e mataram uma mulher nas proximidades do cemitério. Todas as pessoas demonstraram expressões de pavor e um medo incontido tomou conta de todos. Os corações bateram céleres ante a notícia que chocou a todos nós. A morte de uma inocente, logo ali, bem próximo ao nosso convívio.
Era o meu caminho diário para chegar em casa. Uma caminhada de poucos minutos por dentro do bosque até a avenida onde ficava o ponto de ônibus, mas suficiente para assustar devido a área deserta. Algumas vezes a companhia de um ou de mais colegas dava-nos um certo conforto, mas mesmo assim rezava para todos os santos para que nada acontecesse. Lembrava até da mãezinha querida que em casa ficara.
As pessoas foram se retirando aos poucos entre conversas e murmúrios relativos à falecida e outros assuntos menos felizes. Aproximei-me de Lucinda enquanto o coração apertava-me o peito e aquele fato trouxe o pretexto de um colóquio e durante quase uma hora permanecemos contando histórias de um e de outro, até que me despedi e voltei para o escritório. Ao entrar tranquei mais que depressa a porta, janelas e fechei as cortinas, reiniciando a digitação do balanço que deveria entregar no dia seguinte. Por volta das duas horas da manhã acomodei-me para dormir no sofá.
Faltavam poucos minutos para as três horas da manhã quando fui surpreendido por um ruído vindo da porta principal do escritório. Sobressaltado, levantei-me com o lençol sobre meus ombros e me escondi por detrás das cortinas brancas da vidraça e permaneci em silêncio, mas trêmulo de medo. Um suor frio percorreu-me a espinha quando vi um vulto alto e forte, com um gorro escuro cobrindo a cabeça, caminhar pelo sala com uma lanterna de claridade pálida, tão fraca que mal dava para iluminar o ambiente. Atravessou a sala e se plantou bem à minha frente. De onde eu estava podia vê-lo mas não ele a mim e por isto permaneci quieto como uma estátua, mas a minha respiração era tão ofegante que me parecia sacudir toda a janela.
Quando o salteador se aproximou mais da vidraça, na procura de algo valioso, o farol de um carro iluminou o ambiente jogando a minha imagem sobre a parede do escritório, dando uma exteriorização assustadora que fez o homem sacudir violentamente o corpo para trás e empunhando algo que não puder perceber, gritou com voz ameaçadora:
-"Quem está aí? Tem alguém escondido aí? Se tiver vai morrer agora!
Sem saber como, brotou-me uma coragem que eu mesmo não pude perceber e com voz estorvada de pavor, repliquei:
-"Não pode me matar porque já estou morto há muito tempo. Aqui, neste local ralei, aqui eu estou padecido..."
O estranho não esperou pelo fim das palavras... saiu em desabalada carreira, tropeçando nos móveis e derrubando cadeiras, saindo pela mesma porta que entrou, desaparecendo escada abaixo e sumindo no meio do mato.
No dia seguinte soubemos que a polícia havia capturado um criminoso que confessou seus comparsas e o assalto ao bar de seu Alarico e o assassinato da mulher, ocorrido em frente ao cemitério, além de outros crimes acontecidos na região. Ele dizia insistentemente ter conversado com um morto... jurava aos céus nunca mais fazer mal a ninguém.
-"Um morto em um grande lençol branco" - dizia ele - e apontava para o alto, a janela de cortinas brancas.
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