Por: Carlos Eugênio em 09/2014 - Visitas: 2256
ESPELHO
(Carlos Eugênio Rego)
Minha mão vazia sem teu retrato
Reflete imagens cruas, desenha mágoas nuas,
Crias de sementes sãs
Que reguei com água impura
Feito um ranço de loucura
Em terra fértil, numa hora vã
Teu adeus de navalha deixou meu peito em sangria
Dessas que não estancam na solidão.
Feito um errante que caminha para o nada,
Nem pro mar, nem pro Sertão.
Tive que chegar ao deserto, Pra sentir a tua sede.
Agora, o caminho de volta
É como sair de um anzol
E o horizonte aqui em frente
É um olhar direto ao sol.
Do tempo - essa escola bem cruel -
De mágoa já tive umas lições
Hoje sei que mudar o enredo do sonho
Domar o amor, a loucura
É tomar remédio amargo
Sem certeza de cura...
DEUS ECLÉTICO
(Breve oração de um tolo diante do espelho)
Carlos Eugênio
Eu creio num Deus,
Num Deus que às vezes
É de carne e osso.
Que vive, que ama,
Que chora e ri
Do choro e do riso.
Nem sempre é feliz.
Eu creio esse Deus
Que entende o meu estado
De embriaguez,
Que reza comigo
Com insensatez,
Na embriagada
E cruel madrugada,
Calada, cansada.
Que entende os meus medos
E nunca os teus,
E nem teu amor.
Minha fé é egoísta
E eu equilibrista
Entre o gozo e a dor.
Ele diz que há céu
Em bancos de igreja
E camas de motel.
Se o teu Deus não tem sexo
É porque não tem nexo,
É estéril e cruel.
Eu rezo para um Deus
Que enxerga um cego,
Que sabe da luta de um ponto de ônibus,
Defende santas e putas.
Você não entende
As dores de um Deus
Que me cura as chagas
De Cristo sofrido
(alegre ou inibido)
Mas nunca ateu.
Teresina/maio/l989.
PANORAMA SUJO
Carlos Eugênio
Um grito mágoa e surdez
Rasga o silêncio da noite.
Um passo torpe e frio
Traça os trilhos da rua.
Um gesto bêbado e rude
Rasga os bolsos em orgasmos.
Um gemido sóbrio e triste
Chora o preço do ofício.
Um olho arma e fome
Inventa o medo do povo.
Um jorro de álcool e revolta
Canta na boca a coragem.
Um sono eterno e vigia
Cochila atento a tudo.
Um eterno cansaço espera
O cansaço de um novo dia.
Meu peito cansado assiste
A cenas assim marginais...
De um grito mágoa e surdez
Que rasga o silêncio outra vez...
Teresina/novembro/l988.
NARCISO MARGINAL
Carlos Eugênio
Experimento o gosto
Do beijo e do escarro,
No mesmo instante
No mesmo rosto.
Cada pós-gozo
É como se fosse um suicídio,
Cometido com um punhal
Que por instantes
Se fez corpo,
Num prazer marginal.
Basta-me a ressureição
Ao terceiro ou quarto dia
Pra morrer e matar outros corpos
Lavando as mágoas em orgias.
Brasília/julho/l989.
ESCURIDÃO
Carlos Eugênio
Nada me faz poesia
nas coisas que vejo agora.
É como se o mundo fosse opaco.
Os livros antes poéticos,
juro que agora me cansam.
Sou opaco.
Escrevo em versos sujos
meu escuro, meu vazio,
vivo.
Hoje choro o vazio
de escrever, amar e viver,
morro.
Não entendo nunca a cegueira
de pessoas que não me enxergam
poeto.
A sensação mais viva e clara
que consigo descrever, só vem
quando me canso de quase tudo.
Insisto.
Ou não vivo.
Brasília / julho / 2000
© 2014 / 2025 - Todos os direitos reservados: leiturartes.com.br