Por: João Moura em 06/2014 - Visitas: 2212
Teve tudo para vencer na vida, mas venceu! Horas e mais horas de digressões, pensamentos inquietantes, inconformismo, indelicadeza para com seus pretendentes; e, aos poucos tudo foi se delineando, como água solta que vai procurando os lugares mais baixos até chegar.
Nova, ainda com toda inexperiência de uma adolescente, já lhe pesavam as ideias da esperteza, como se o mundo fosse apenas um brinquedo, uma bola de neve, uma bolha ou qualquer coisa irrelevante... ia à escola mas sempre pulava o muro antes mesmo da segunda aula; achava os professores um bando de idiotas, obsoletos e fora de cogitação, flertava com o porteiro - senhor gordo, suado e altamente imbecil - para com isso poder sair com mais facilidade, nos dias em que não queria se arriscar muito.
Aos dezesseis anos já engravidou do coleguinha Zé da Borracharia - como era conhecido - um maconheiro da região, que antes mesmo de ser pai, morreu de acidente, quando fugia da polícia em mera diligência de se safar dum furto numa cidade vizinha. Abortou no banheiro do colégio, e, teve uma hemorragia quase fatal... Mas recomeçou, pois uma guerreira não se entrega fácil, sem deixar sua marca registrada pelo mundo! Precisava montar seu próprio negócio; os bailes, a escola, as festas religiosas não trariam mais interesses dos homens a seu respeito e foi aí que entrou a possibilidade de construir a casa de show "recanto da princesa" que nada mais era que uma pequena latada à luz de vela e com uma clientela de senhores na faixa etária de setenta anos, com dentes podres, todos gordos, fedidos e açambarcados pelo destino.
Ambiente cheio de vícios como cachaça, cigarros lícitos e ilícitos, algumas novidades a mais como pó de cheirar e algumas pedras que rolavam nos bastidores; ademais tinham a vista grossa de alguns dos amigos da farda - clientes esporádicos.
Com o tempo tudo se desgasta e o cantinho do ganha-pão de Cassandra foi murchando como sua pele que de flácida e sem tratamento adequado fora acumulando sarnas, ferimentos à unha, hematomas de cacete nas brigas frequentes e escoriações pelos degredos da própria profissão que por sinal era de alto risco.
Passara a assistir sua exclusão mediante as mais jovens, bem mais cotadas, em que se oferecia cerveja, porções nas madrugadas mais puxadas em que a fome lhes atormentava e o desgosto proporcionava o mau humor para com as outras que se desgostavam e desapareciam do recinto até que ficara só. Pensou em jogar as últimas cartas e sair de cena, para apenas agenciar prostitutas e planejar alguns furtos e roubos: teve uma rápida e falsa ascensão, contudo, surgiu a censura inoportuna da vizinhança que culminou com uma forte investigação pela polícia civil e mais tarde: olhe D. Cassandra curtindo o xilindró! Cadeia provinciana, sem o menor laser! Nem sequer havia banheiro que se adequasse a uma senhora já de idade avançada, quanto mais quem lhe fornecesse comida! Penou até que sem aparecer nenhum advogado para defendê-la, soltaram-na num gesto de cansaço moroso da justiça e por circunstâncias óbvias.
Meses depois lá estava ela entre as avenidas duma cidade maior - na alameda - vendendo pirulitos, balinhas e demais produtos e bugigangas para à noite descansar no banco da praça... Certa noite ateou-se fogo na mesma e ao esquentá-la, se despertou com as chamas alvoroçadas naquelas pernas cheias de varizes e dormentes de tantos passos pela vida quase perdida. Fugira do atentado, tendo gangrena e amputação da perna esquerda, porém não se livrou da pouca sorte, se é que exista... Debalde lutou pelo benefício do INSS, mas não conseguiu; faltavam-lhe documentos que comprovassem algum tipo de benefício durante sua vida ativa.
Foram-se os anos (que não esperam ninguém) e a anciã passou a pedir comida nas casas, tomar alguns restos de bebidas dos copos nas mesas de bares, pegar tocos de cigarros nas ruas para preencher o hábito tabagista que a perseguia desde a infância e assim mostrou ao país como se pode colaborar para o desenvolvimento e ascensão de uma sociedade mais bonita, humana, que despreza o estudo, a boa música, a poesia, que zomba do teatro, manipula a consciência, tira o suor do trabalhador para fins como a prostituição, pistolagem, lavagem de dinheiro, agiotagem, depravação com os sentimentos, banalização do sexo e valorização do imediatismo, nepotismo, clientelismo, subserviência e demais manobras dos que pensam o mundo como as amebas!
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