Por: Nonato Fontes em 05/2014 - Visitas: 2517
No dia da poesia, o site leiturartes presta esta singela homenagem a aquele que viveu bem pouco, mas deixou um legado imenso para a humanidade, principalmente os amantes da poesia: Castro Alves.
Embarque na poesia deste grande poeta que fez da palavra a arma mais forte contra a escravidão e ficou conhecido como o poeta dos escravos. Leia o seu "Navio Negreiro":
O NAVIO NEGREIRO
(Castro Alves)
I
Estamos em pleno mar... Doudo no espaço
Brinca o luar – doirada borboleta –
E as vagas após ele correm... cansam
Como turba de infantes inquieta.
Estamos em pleno mar... Do firmamento
Os astros saltam como espumas de ouro...
O mar em troca acende as ardentias
__ Constelações do líquido tesouro...
Estamos em pleno mar... Dois infinitos
Ali se estreitam num abraço insano
Azuis, dourados, plácidos, sublimes...
Qual dos dois é o céu? Qual o oceano?...
Estamos em pleno mar... Abrindo as velas
Ao quente arfar das virações marinhas,
Veleiro brigue corre à flor dos mares
Como roçam na vaga as andorinhas...
Donde vem?... Aonde vai?... Das naus errantes
Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?
Neste Saara os corcéis o pó levantam,
Galopam, voam, mas não deixam traço.
Bem feliz quem ali pode nesta hora
Sentir deste painel a majestade!...
Embaixo o mar... em cima – o firmamento...
E no mar e no céu – a imensidade!
Oh! Que doce harmonia traz-me a brisa!
Que música suave ao longe soa!
Meus Deus! Como é sublime um canto ardente
Pelas vagas sem fim boiando à toa!
Homens do mar! Ó rudes marinheiros
Tostados pelo sol dos quatro mundos!
Crianças que a procela acalentara
No berço destes pélagos profundos.
Esperai! Esperai! Deixai que eu beba
Esta selvagem, livre poesia...
Orquestra – é o mar que ruge pela proa
E o vento que nas cordas assobia...
Por que foges assim, barco ligeiro?
Por que foges do pávido poeta?
Oh! Quem me dera acompanhar-te a esteira
Que semelha no mar – doudo cometa!
Albatroz! Albatroz! Águia do oceano,
Tu que dormes das nuvens entre as gazas,
Sacode as penas, Leviatã do espaço!
Albatroz! Albatroz! dá-me estas asas...
II
Que importa do nauta o berço,
Donde é filho, qual seu lar?...
Ama a cadência do verso
Que lhe ensina o velho mar!
Cantai! Que a noite é divina!
Resvala o brigue à bolina
Como um golfinho veloz.
Presa ao mastro da mezena
Saudosa bandeira acena
Às vagas que deixa após.
Do Espanhol as cantilenas
Requebradas de langor,
Lembram as moças morenas,
As andaluzas em flor.
Da Itália o filho indolente
Canta Veneza dormente
__ Terra de amor e traição –
Ou do golfo no regaço
Relembra os versos de Tasso,
Junto às lavas do Vulcão!
O inglês - marinheiro frio,
Que ao nascer no mar se achou –
(Porque a Inglaterra é um navio,
Que Deus na Mancha ancorou)
Rijo entoa pátrias glórias,
Lembrando, orgulhoso, histórias
De Nelson e de Aboukir.
O Francês - predestinado –
Canta os louros do passado
E os loureiros do porvir...
Os marinheiros Helenos,
Que a vaga iônia criou,
Belos piratas morenos
Do mar que Ulisses cortou,
Homens que Fídias talhara,
Vão cantando em noite clara
Versos que Homero gemeu...
...Nautas de todas as plagas!
Vós sabeis achar nas vagas
As melodias do céu...
III
Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!
Desce mais, inda mais... não pode o olhar humano
Como o teu mergulhar no brigue voador.
Mas que vejo eu ali... que quadro de amarguras!
Que cena funeral!... Que tétricas figuras!...
Que cena infame e vil!... Meu Deus! Meu Deus! Que horror!
IV
Era um sonho dantesco... O tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho,
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar do açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...
Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras moças, moças nuas, espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs.
E ri-se a orquestra irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais...
Se o velho arqueja, se no chão resvala,
Ouvem-se gritos... o chicote estala.
E voam mais e mais...
Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece...
Outro, que de martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!
No entanto o capitão manda a manobra
E após, fitando o céu que se desdobra
Tão puro sobre o mar,
Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
“Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Fazei-os mais dançar!...”
E ri-se a orquestra irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais...
Qual um sonho dantesco as sombras voam!...
Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
E ri-se Satanás!...
V
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura se é verdade
Tanto horror perante os céus...
Ó mar! Por que não apagas
Co’a esponja de tuas vagas
De teu mando este borrão?...
Astros! Noite! Tempestades!
Rolai das imensidades!
Varei os mares, tufão!
Quem são estes desgraçados,
Que não encontram em vós,
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são?... Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noite confusa...
Dize-o tu, severa musa,
Musa libérrima, audaz!
São os filhos do deserto
Onde a terra esposa a luz
Onde voa em campo aberto
A tribo dos homens nus...
São os guerreiros ousados,
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão...
Homens simples, fortes, bravos...
Hoje míseros escravos...
Sem lua, sem ar, sem razão...
São mulheres desgraçadas
Como Agar o foi também,
Que sedentas alquebradas,
De longe... bem longe vêm...
Trazendo com tíbios passos,
Filhos e algemas nos braços,
N’alma – lágrimas de fel.
Como Agar sofrendo tanto,
Que nem o leite do pranto
Tem que dá pára Ismael...
Lá nas areias infindas,
Das palmeiras no país,
Nasceram – crianças lindas,
Viveram – moças gentis...
Passa um dia a caravana
Quando a virgem na cabana
Cisma da noite nos véus...
...Adeus! Ó choça do monte!...
...Adeus! palmeiras da fonte!...
...Adeus! amores... adeus!...
Depois, o areal extenso...
Depois, o oceano de pó...
Depois no horizonte imenso
Desertos... desertos só...
E a fome, o cansaço, a sede...
Ai! Quanto infeliz que cede,
E cai pra não mais s’erguer!...
Vaga um lugar na cadeia,
Mas o chacal sobre a areia
Acha um corpo que roer...
Ontem a serra leoa,
A guerra, a caça ao leão,
O sono dormido à toa
Sob as tendas d’amplidão...
Hoje... o porão negro, fundo,
Infecto, apertado, imundo,
Tendo a peste por jaguar...
E o sono sempre cortado
Pelo arranco de um finado,
E o baque de um corpo ao mar...
Ontem plena liberdade,
A vontade por poder...
Hoje... cúmulo de maldade
Nem são livres pra... morrer...
Prende-os a mesma corrente.
__ Férrea, lúgubre serpente –
Nas roscas da escravidão.
E assim roubados à morte,
Dança a lúgubre coorte
Ao som do açoite... Irrisão!...
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se eu deliro... ou se é verdade
Tanto horror perante os céus...
Ó mar, por que não apagas
Co’a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?
Astros! Noites! Tempestades!
Rolai das imensidades!
Varei os mares tufão!
VI E existe um povo que a bandeira empresta
P’ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! Meu Deus! Mas que bandeira é esta,
Que imprudente na gávea tripudia?!...
Silêncio!... Musa! Chora, chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto...
Auriverde pendão da minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra,
E as promessas divinas da esperança...
Tu, que da liberdade após a guerra,
Foste hasteada dos heróis na lança,
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha.
Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu na vaga,
Como um íris no pélago profundo!
...Mas é infâmia demais... Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo...
Andrada! Arranca esse pendão dos ares!
Colombo! Fecha a porta de teus mares!
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