Por: Nonato Fontes em 05/2014 - Visitas: 2399
Apenas um menino acanhado, somente isso. Assim era o Ronaldo Neves, fugia das rodas onde tinha muita gente, gostava mais era de ficar sozinho estudando, ou numa brincadeira de pião ou bola, era onde conseguia ficar mais a vontade.
Na época a diversão em nossa escola eram os jogos de futebol, estes ele não temia, era um jogador meia boca, mas nas peladas era o primeiro a ser chamado. Carregava sempre um calção de reserva para as horas de futebol. Logo que tocava a campainha do recreio corria para o Pé do Morro, estádio batizado por ele por estar próximo a um pico bastante alto.
Levava a vida se divertindo, mas com o apego às letras, gostava de estar bem pontuado nas notas também. Na sala de aula sentava bem à frente, somente mais tarde foi que descobri o motivo do Ronaldo sentar onde nenhum dos outros garotos, nem mesmo as garotas gostavam de ficar, próximo do quadro negro, da mesa do professor, era o medo de alguém conversar como bem faziam os alunos que ficavam na parte dos fundos da sala de aula, ou fazer qualquer brincadeira que necessitasse de ser chamado à atenção do professor, isso ele tremia de medo.
Ronaldo não admitia, mas alimentava uma paixão por uma garota da sala, menina calada, comportada, fazia o tipo do garoto. Oferecia muitos gols no campinho a uma pessoa, que ele dizia, admirava muito. Nem mesmo eu imaginava quem poderia ser, mais tarde, descobri em olhares acanhados e furtivos da menina em sua direção.
Não me recordo muito bem o nome do aluno que atirou certeiramente uma bolinha de papel na professora de inglês, bem na poupança avantajada que a dita cuja tinha, ou tem. Mas não me esqueço de nenhuma vírgula, foi da reação destemperada e covarde dela, pois acusou a pessoa errada, justamente o Ronaldo. Saiu de sua boca xingamentos contra o menino, que não convém repetir, até mesmo para não causar constrangimento a uma classe tão respeitada. Somente repasso aqui a sua última frase antes que o verdadeiro autor fosse revelado: "Sabe qual a única coisa que você vai ser quando crescer? Um bandidinho de terceira categoria!". Confesso que me deu vontade de agredir o Ronaldo por vê-lo soltar o choro em vez de devolver tudo aquilo, mas era esperar muito de alguém que sofria de timidez crônica.
Uma coisa me alegrou naquela fatídica tarde, a pessoa que dedurou o verdadeiro autor da bolada foi justamente a garota que o Ronaldo gostava. Talvez fosse pena, mas também ninguém se arriscou a fazê-lo antes, mesmo todos estando com pena naquela hora. Só sei que depois da descoberta esperei uma generosidade daquela professora para com Ronaldo, mas tudo que ela fez foi chama-lo de abestalhado por ter ficado calado sem dizer que não tinha sido ele, apenas chorava como se fosse menino buchudo. Ronaldo ao ouvir tudo isso, juntou seus cadernos saiu e não mais voltou, pelo menos enquanto estudei por lá.
Eu tinha 12 anos quando tudo isso aconteceu, já tenho meus trinta e dois, há vinte anos. Quanto tempo passou sem ter notícia daquele menino que brincava de futebol com a gente no Pé do Morro, que ensinava a pegar o pião antes que ele tocasse o chão. E por onde andará Cris, será que se casou? Será que gostava mesmo do Ronaldo? São perguntas que fazemos apenas para exercitar a mente, lembrar-se dos bons e velhos tempos.
Quanto ao Ronaldo, esse eu recebi notícias, não virou nenhum doutor, não é engenheiro, eram as duas profissões que ele sempre me falava que queria ser quando crescesse. Numa de suas ligações contou que lutou muito tentando esquecer aquele episódio, quase não conseguiu, enfrentou uma faculdade se borrando todo, medo de professor, de professora, de alunos, de tudo que lembrasse aquele dia. Mas conseguiu superar, se formou. Falou certa vez com ironia sobre aquele episódio, ele repetiu letra por letra a última frase que a professora lhe disse: "Sabe qual a única coisa que você vai ser quando crescer? Um bandidinho de terceira categoria!", deu um longo sorriso e finalizou: Ainda hoje eu tento descobrir se existe categoria para bandido.
Há alguns dias frequentei uma solenidade em um colégio da cidade, lá estava a dita cuja da professora sentada bem do meu lado, senti uma vontade de perguntar se já tinha se aposentado, mesmo sabendo que ela continuava no magistério. Nomeada por algum político daqueles, exercia agora o cargo de diretora da escola. Um dos convidados ao ser chamado para proferir a palavra rendeu uma homenagem à classe respeitada de professores que se fazia presente, olhei rapidamente para ela que se contorcia em devaneios, num delírio de rainha ao ser cortejada pela plebe. Sordidez minha, ou maleficência, mas uma coisa é certa, ela nem sabe que a homenagem àquela classe com certeza não se encaixaria no patamar da sua ignorância, pensei.
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