Por: Nonato Fontes em 08/2015 - Visitas: 4571
Morei em uma rua no centro de minha cidade por mais de dez anos, tempo em que meu pai fazia uma reforma em nossa pequena casa em um bairro afastado e ainda pouco habitado. Não tínhamos intenção de passar tanto tempo, visto que não era de propriedade de minha família a casa onde ficamos e causava constrangimento ao meu pai pessoas adentrando a residência sem que fossem convidados.
Durante esse tempo de permanência naquele lugar, fizemos muitas amizades. Meus pais com os mais velhos. Nós, eu e meus irmãos, éramos seis, adquirimos muitas amizades com a criançada de nossa idade. Lembro muito bem do quanto me diverti e do quanto aprendi em nossas brincadeiras, nossos passeios longe de casa, arriscando umas relas dos pais, mas gostávamos de desbravar lugares distantes.
Havia entre uma rua de mais ou menos duas casas, um terreno baldio que outrora funcionava um poço que abastecia as pessoas daquela redondeza em épocas mais antigas, do outro lado uma tapera, quase toda em ruínas, sobrando um pouco intacta apenas a parte dos fundos. Um lugar que nem se sonhava um dia haver alguém habitando. Pois lá tinha um morador, era um fabricante de malas de madeira, um senhor aparentando uns sessenta anos ou mais, passava à noite batendo pregos em malas e durante o dia saia com duas nas mãos para vendê-las na feira da cidade.
O que me chamou a atenção para aquele senhor não foi o seu ofício, mas a coragem de ficar bem ali naquela casa sem estrutura nenhuma. Achei que precisava saber mais sobre ele, o porquê daquilo, assumi um papel de Sherlock Holmes medroso. A primeira pessoa que comentei sobre ele foi o meu pai, visando descobrir algo mais sobre o Homem da Mala, como apelidei tão logo soube do que viva. Na resposta a meu comentário meu pai quase me bate depois de chamar de bisbilhoteiro. Não quis saber mais nada com ninguém, resolvi descobrir sozinho, e a única saída seria perguntar a ele próprio.
Fiquei desde as seis horas da manhã de um sábado em frente à tapera, visto que a feira da cidade acontecia nos sábados e, segundo falavam, era lá que ele vendia suas malas. Mais ou menos umas sete horas ele saiu com duas nas mãos, deu poucos passos até que encostei e o chamei. Era de assustar! Eu nunca o tinha visto, era uma barba de causar inveja a Tiradentes, muito mais feia! Um homem baixo, barriga grande e andava com a cabeça enfiada no pescoço, como diziam dos que andavam e falavam de cabeça baixa, olhando por baixo. Ele parou, e com uma voz cavernosa foi me perguntando: Que desejas menino curioso? Parece que já tinha me visto outras vezes por perto, mas decidido como estava, taquei a pergunta: Por que o senhor mora nesta casa velha, já quase caindo toda?
O Homem da Mala colocou as duas que andava no chão e me convidou a entrar, logo esquivei, ele percebeu meu medo e pediu que encostasse mais um pouco, pois tinha que falar baixo, ninguém podia ouvir. Fiquei mais perto, sempre mantendo a distância necessária para uma fuga. Mas não foi preciso e, se fosse, eu jamais ia conseguir, minhas pernas ficaram paralisadas. O senhor que o perfil já assustava, me contou que não morava ali, apenas completava seu trabalho, que não era fazer malas, como imaginavam os vizinhos, mas trancar as crianças que faziam coisas erradas longe dos pais dentro delas, aqueles que não se comportavam como deviam. Antes de sair, olhou bem para mim - quase que eu perdia o respeito pelo fundo da calça - disse quase que em meus ouvidos: Você estava na minha mira, mas descobri que não é menino mau, que respeita seus pais, que respeita as pessoas, que não anda fazendo nada feio, você pode ir, não conte nada a ninguém, não queira que eu mude de opinião a seu respeito.
Essa rua não ficava muito distante de minha casa, mais ou menos uns dois quarteirões, mas depois que recobrei as forças nas pernas, sai numa velocidade que me pareceu ter atravessado apenas a rua, e já estava era em minha casa. Cansado, calado, entrei para o quarto e fui refletir sobre aquilo, imaginar o quanto aqueles dois meninos que iam naquelas malas estavam arrependidos. O que me revoltou naquele momento, foi não ter tido a coragem de perguntar para onde eles iam ser levados e o que ia acontecer com eles.
Guardei esse segredo por muito tempo, aquele senhor se mudou uns três anos depois. No retorno de minha família à nossa residência, e passados quinze anos daquele episódio, resolvi confessar a um irmão meu, o mais velho, esse sorriu e disse que era apenas coisa de minha imaginação, não existiu o velho, era medo que criança tinha e construía coisas. Tentei com os outros quatro irmãos, e todos diziam a mesma coisa, esse velho não existiu, que aquela tapera era desabitada desde a época que seus donos faleceram. E nenhum deles tinha ouvido falar do Homem da Mala.
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