Por: Vilebaldo Rocha em 05/2014 - Visitas: 10650
Artigo (A DUPLA PERSONALIDADE DO PROTAGONISTA DO ROMANCE PALHA DE ARROZ DE FONTES IBIAPINA)
RESUMO
Este artigo tem como objetivo analisar a dupla personalidade do protagonista do romance "Palha de Arroz" de Fontes Ibiapina. Inicialmente direcionou-se um olhar para a vida e obra do autor com a pretensão de captar peculiaridades que tecem a sua vasta obra. Torna-se perceptível que Fonte Ibiapina tem na narrativa simples, linear, cotidiana e coloquial, ornada por ditos e provérbios populares, uma incomparável inventividade literária que propositadamente reveste a realidade regional. Neste contexto fantasia e realidade se aproximam e se confundem singularizando a escrita de Fontes tornando-a simultaneamente única e magistral.
Entretanto este trabalho se detém a avaliar apenas a vivência do drama da personagem do "Palha de arroz" no contexto social com ênfase na psicologia. "Pau de Fumo" e "Chico da Benta": as duas faces de um mesmo homem. O primeiro, ladrão barato (rouba pra sustentar a família); o segundo, cidadão honesto, culto e trabalhador, à procura do seu espaço na sociedade. A valia deste trabalho dar-se-á no deleite da obra literária em si; como também na análise social e psicológica da personagem em questão. A trilha metodológica percorrida compreende: pesquisa bibliográfica, seleção e validade das informações, e redação final do artigo.
PALAVRAS-CHAVE: Palha de arroz; Fontes Ibiapina; transtorno dissociativo;
INTRODUÇÃO
O homem é um ser emblemático. Quem poderá decifrá-lo? Se ele mesmo não sabe de si, não cabe em si. Quantas personalidades podem existir num só corpo, numa só cabeça? Quem poderá dizê-lo? Este artigo não busca decifrar tal enigma, mas estudar e entender as duas faces da personagem central do romance Palha de Arroz de Fontes Ibiapina: Pau de Fuma e Chico da Benta. Por que dois seres em um só? O que é realmente dupla personalidade? São questionamentos que este estudo procura elucidar, naturalmente que fazendo uma análise mais ampla da obra em questão como também traçando o perfil do escritor.
O estudo da obra conduz inicialmente a síntese biográfica do autor, que permite o conhecimento da tipologia literária e consequentemente converge para a contextualização. Romancista, contista, historiador, regionalista por excelência, Fontes Ibiapina viveu a frente do seu tempo deixando um legado literário magnânimo cuja contribuição histórica e artística é imensurável.
Em palha de arroz Fontes Ibiapina tece um enredo focado no romance urbano, com características do regionalismo, matizado pela crítica social e mesclado por aspectos psicológicos traduzidos nos dramas do seu protagonista que vivencia simultaneamente duas personagens, esboçando a tênue linha que separa o Deus e o demônio que compõem um só ser.
Este artigo se constitui de uma pesquisa bibliográfica e objetiva analisar o romance Palha de arroz de Fontes Ibiapina, centrando-o na perspectiva social e psicológica para explicar as duas faces de um mesmo homem, constitutivas do drama do protagonista. Entretanto a valia deste estudo se consubstancia, na esfera da literatura, e pretende contribuir com o resgate da magnânima seara literária do referido autor, injustamente esquecido pela crítica acadêmica. É neste contexto que este trabalho se justifica considerando o caráter informativo sobre questões altamente relevantes no cenário literário e social. A trilha metodológica percorrida compreendeu os seguintes procedimentos: pesquisa bibliográfica, seleção das fontes, leitura e análise das informações coletadas, validação e sistematização das informações, e redação do artigo.
FONTES IBIAPINA: SUA VIDA E SUA OBRA
Para uma melhor compreensão de uma obra literária, faz-se necessário primeiro conhecer um pouco da vida e da obra do autor. Sintetizar em algumas palavras ou laudas quem foi e o que fez Fontes Ibiapina é, por assim dizer, algo impossível. Portanto, este capítulo se constitui de uma tessitura tênue sobre os aspectos principais da vida do homem que viveu para cultura e se fez cultura viva em toda extensão piauiense. Conforme notifica Rodrigues e Aragão:
"O homem é a expressão do meio cultural em que vive. Assim foi Fontes Ibiapina: a representação viva da cultura do Piauí, autor de obras que retratam com apuro a vida no sertão através de uma literatura cheia de graça, situada entre o real, o folclórico e o mítico. As pesquisas realizadas por Ibiapina são os mananciais da produção do autor, que busca, nas relações intrínsecas do homem com o meio, matéria-prima para sua literatura." (RODRIGUES, ARAGÃO, 2009 p.1)
A volta às origens do grande literato Fontes Ibiapina permite a constatação de que este nasceu no seio de uma tradicional família picoense, cuja história ainda pode ser contada pelos familiares, e o berço natal pode ser contemplado pelos estudiosos e admiradores.
Conforme Rodrigues e Aragão (2009) em 14 de junho de 1921, no lugar denominado Lagoa Grande, município de Picos-PI, nasceu João Nonon de Moura Fontes Ibiapina, que ficou conhecido no mundo da literatura por FONTES IBIAPINA. Segundo filho do casal Pedro de Moura Ibiapina e Raimunda Fontes de Moura.
O menino Nonon ingressou no mundo letrado conduzido pelo seu tio "mestre-escola Quincó Fontes" - Joaquim Francisco Fontes - responsável por toda instrução primária dos sobrinhos e toda criançada da circunvizinhança. Esta formação se dava em sua própria casa, portanto, em sua terra natal o menino Nonon não freqüentou grupos escolares.
O ano de l942 marca uma mudança fundamental na vida do jovem Nonon, este deixa sua querida Picos para prosseguir seus estudos na capital piauiense; em dezesseis de fevereiro ali finca seus pés.
Presta o exame de admissão para o colégio Diocesano e logra com êxito o primeiro lugar, neste colégio cursa todo o ginásio (ensino fundamental) e o 2º grau (ensino médio). Ainda estudante dedica parte de seu tempo ao jornalismo. Em Teresina conhece e casa-se com Clarice Rosa do Monte, com quem teve quatro filhos: Jamira Ibiapina, Marlene Ibiapina, Ariosto do Monte Ibiapina e Aristóteles do Monte Ibiapina. Em 1954 bacharela-se pela Faculdade de Direito do Piauí. Logo após ingressa para a magistratura, sendo juiz de direito em várias comarcas do Piauí, como: Ribeiro Gonçalves, São Pedro, Miguel Alves, Piripiri e Parnaíba.
Há consonância na bibliografia referenciada quanto à inserção de Fontes Ibiapina no universo da literatura, que este estreou como contista com a publicação da obra "Chão de meu Deus" em 1958, desde então a seara literária lhe rendeu não só admiradores, mas também o reconhecimento devido.
Eleito para a Academia Piauiense de Letras toma posse em 29 de janeiro de 1978, e entra, portanto, para a plêiade dos imortais. Foi o terceiro ocupante da cadeira nº 9, patroneada por Alcides Freitas, que teve como seu antecessor o folclorista e magistrado Pedro Borges da Silva. Amante das letras Fontes Ibiapina lutou em prol da fundação da Academia Parnaibana de Letras, inaugurada em 28 de julho de 1983, sendo o mesmo eleito primeiro presidente.
Conforme Moura (2002), Fontes Ibiapina foi durante algum tempo, convidado a participar do Conselho Estadual de Cultura e atuou como professor e diretor do Colégio Rural e Artesanal Pio XII. Foi membro da Associação Profissional dos Jornalistas do Piauí e do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí, mas, sua maior glória está na literatura que produziu, publicou, ou deixou inédita; nos artigos que escreveu na imprensa do Piauí; nas aulas ministradas nos colégios nos quais exerceu o magistério.
Em 1982, por mérito, o escritor Fontes Ibiapina recebe o Prêmio Nacional do Livro, com o romance "Vida Gemida em Sambambaia", cujo lançamento se deu depois de sua morte.
Em dez de abril de 1986 o Piauí, em luto, se despede de Fontes Ibiapina. O óbito se deu em Parnaíba, onde exercia a função de Juiz, e no dia seguinte seu corpo foi plantado na capital do estado. Plantado, pois, escritor dessa estirpe deve ser plantado para que suas idéias possam germinar e florescer sempre.
Segundo Moura (2002), na noite que precedeu a partida definitiva, o escritor passara horas e horas com uma luneta na mão para observar a passagem do cometa Halley. Pode-se inferir que o seu regresso à morada eterna, tal qual a passagem do cometa, assim se fez efêmero e iluminado. .
A despedida se refere ao homem e não a sua vasta obra, que parece ter ganhado mais força e notoriedade.
A bibliografia de Fontes Ibiapina compreende: Romances: Sambaíba - 1963, Palha de arroz - 1968, Tombador - 1971, Vida Gemida em Sambambaia - 1984, Nas Terras de Arabutã - 1984, Curral de Assombrações - 1985; Contos: Chão de Meu Deus - 1958, Brocotós - 1961, Pedra Bruta - 1964, Congresso de Duendes - 1969, Destino de Contratempos - 1974, Quero, Posso e Mando - 1976, Mentiras Grossas de Zé Rotinho - 1977; Folclore: Paremiologia Nordestina, Lorotas e Pabulagens de Zé Rotinho (conjunto de crônicas premiadas pelo Mobral), e Passarela de Marmotas, e Teatro: O Casório da Pafunsa - 1982.
A capacidade criadora de Fontes Ibiapina era de tal fertilidade que transcendeu à morte, pois, o legado deixado por ele não se restringe às publicações, visto que deixou ainda no prelo algumas obras, tais como: Eleições de Sempre e Até Quando, coletânea de contos. Que sairiam com a data de 1985.
Considerando Mouro (2002) o escritor registrou numa das folhas iniciais de "Curral de Assombrações", a lista das obras inéditas, sendo elas: contos: Amor Roxo, Mentiras de Verdades, Onde a Velha Mediu de Cócoras, Onde o Filho Chora e a Mãe Não Houve e Nas Capembas Rajadas. Romance: Pecado é o que Cai do Cacho. Folclore: Gente da Gente; Desfile de Malucos; Mentiras ou não, o Povo Conta; Crendices e Supertições do Piauí; Terreiro de Fazenda; Ponta de Terreiro e Almas Penadas. No pós-morte, foram publicados dois opúsculos divulgando contos de Fontes Ibiapina: Trinta e Dois e Tangerinos, 1988, edições Corisco/Projeto Petrônio Portela e Dr. Pierre Chanfubois", sem data de publicação, edição conjunta Corisco/APL/PPP, Teresina.
Diante do exposto torna-se perceptível que um ser humano com a magnitude de Fontes Ibiapina, que abrigou nos recônditos de sua alma um fenomenal escritor, capaz de imaginar o inimaginável e esboçar o seu imaginário com tamanha autenticidade, de modo a se confundir com a realidade e que ainda fez da sua vida real um perene caminhar pelos caminhos da honradez, da integridade e da dignidade, tem tamanha extensão que não comporta em poucas linhas ou míseras laudas de um simples escrito. Desta forma, pode-se acrescentar que a grandeza de um homem e a genialidade literária deste são simplesmente indescritíveis.
PALHA DE ARROZ: FANTASIA E REALIDADE
Os críticos piauienses apregoam que Fontes Ibiapina tinha no conto a sua melhor forma de expressão literária, entretanto "Palha de Arroz", que é seu segundo romance, desmonta e desqualifica esses argumentos dos que o quiseram pô-lo na qualidade de romancista inferior.
Mas, sobre ele, é bom que se ressalte: antes do romancista, do contista, do folclorista, do teatrólogo, e até, quem sabe, do poeta que escondeu seus versos, ele era acima de tudo um contador de histórias e estórias. Isto porque, a realidade nordestina, (a seca e o seu chicote de sol, em especial os cafundós de Picos) é retratada em sua obra de uma forma tão contundente e real, que chega a confundir os incautos; aqueles que o tem mais por pesquisador do que por ficcionista, o que não corresponde à verdade, visto que, ele viu, sentiu e impregnou a sua alma com as agruras do povo nordestino, transformando-a em obra viva, matizando assim sua ficção com os tons da realidade, emprestando aos seus romances uma exuberância peculiar.
O fato é que Fontes Ibiapina com uma narrativa simples, linear, cotidiana e coloquial, ornada de ditos e provérbios populares, onde por vezes a voz do narrador confunde-se com a da própria personagem, não era por limitação, incapacidade de invenção ou embasamento teórico da composição romanesca, mas sim, por acreditar e defender a cultura popular e dela fazer seu meio de expressão. Ele quis construir uma obra de denúncia urbana, e também universal, mas com as ferramentas e os instrumentos que o cotidiano caboclo lhe dera.
Alguns críticos vêem na linguagem coloquial e cotidiana de Fontes o seu calcanhar de Aquiles. Ledo engano, esta é, em verdade, sua escalibu. O que corrobora a assertiva de Paulo: "Quando sou fraco então é que sou forte". (II Coríntios 12,10).
Fontes Ibiapina retrata no romance Palha de Arroz a capital piauiense na década de 40. Nesta obra a ficção calcada na realidade, se traduz em denúncia, em coragem, mas principalmente em rebeldia. É um grito em favor dos mais fracos, um grito de guerra: quando critica a ordem governamental estabelecida e o poder ditatorial do governo Vargas; é um grito de repúdio: ao mostrar toda a miséria que reina nos bairros pobres de Teresina, em especial o bairro "Palha de Arroz".
O escritor é considerado pela crítica um ficcionista da terra e do homem comum, especialmente do roceiro piauiense, reconhecido como bom contista, porém com reservas em relação ao romance, conforme enfoque:
A crítica sinaliza para o contista de boa qualidade. O Piauí tem um bom contista. O romancista é um remanescente do romance de 30, de regionalismo localizado. À exceção para o romance urbano, social, documental Palha de Arroz, sua obra mais conhecida. (LIMA, 2000, p 132)
As personagens transitam por toda a obra, carregando a sua dor, o seu lamento, cada uma com sua esperança, ainda que seja por uma morte breve para atenuar o sofrimento, cada uma como uma ferida aberta da sociedade. E esta não busca curá-la, mas sim extirpá-la. É um fatalismo anunciado, como dizem: é o destino. Durante toda a obra, Pau de Fumo sabe que o seu futuro é o fundo do poço da usina, sempre a esperá-lo de braços abertos. Conforme recorte:
"Sentia os guardas em seus calcanhares. Carreira maluca. Disparada sem termo por cima de paus e pedras. Em direção à Usina Elétrica. Se de qualquer maneira não desse certo, seria a única tábua de salvação. E mesmo um dia havia de se acabar dentro daquele poço com mais de sessenta metros de profundidade. (Seriam oitenta?!...Mais?... Menos?...) A usina estava parada. Morta há bem uns quatro anos. (Mais?... Menos?...) Que coisa! Pensamento sem futuro. O poço estava vivo. E um dia havia de se acabar dentro dele Lá no fundão! (Hoje?... Amanhã?...) Pensamento besta. Mas um dia morreria nele. De qualquer maneira satisfeito. Longe dos homens que sempre puderam e nunca lhe prestaram um por pequeno que fosse benefício. Melhor mesmo morrer só. Só e abafado num poço fundo, numa escuridão eterna. (Suicídio?... Iria para o Inferno?... De que jeito seriam os tais quintos de lá? Inferno existia mesmo? Seria com i maiúsculo?) Ora, ora, ora!... Que besteira! Mesmo existindo, o que adiantaria em seus sofrimentos?..." (FONTES IBIAPINA, 2007, 13-14.)
O inferno é aqui. Disso Pau de Fumo tinha plena consciência e correu para a morte, não no poço da Usina, mas saltando da ponte do rio e da vida esbravejou: "Seus filhos da puta". O protagonista esbraveja, não contra os soldados que sempre o perseguiram, mas contra toda a sociedade; contra o sistema político e social estabelecido que sempre o discriminou e podou o seu sonho de liberdade. Aqueles que ele aprendeu nos livros dos filósofos da Revolução Francesa: Igualdade, Liberdade e Fraternidade; caiam por terra as asas de um pássaro sonhador. (FONTES IBIAPINA, 2007, p.213)
Como Palha de Arroz é um romance que oscila entre ficção e a realidade, o próprio autor é também personagem, lembrando o estudante exemplar que o fora, sua incursão pelo jornalismo e sua busca pelos fatos que futuramente comporiam o romance, notificado pelo protagonista no recorte a seguir:
"Um estudante me disse que vai escrever um romance sobre os incêndios e o nosso Bairro, onde eu, você, Veva, Ceição e Antonino seremos personagens centrais. (...) Ele mesmo não diz, mas todo mundo aqui sabe que é o primeiro aluno do Liceu velho. Temos feito muitas e bonitas farras. Chama-se Jônatas Nonato de Moraes Farias Itabaiana. Mas ele, que escreve em jornais, só assina mesmo Farias Itabaiana." ( Op cit p.187)
O estudante referenciado é o personagem Jônatas Nonato de Moraes Farias Itabaiana, Farias Itabaiana. Observa-se que as inicias do seu nome, intencionalmente coincidem com as de João Nonon de Moura Fontes Ibiapina. Esta foi a maneira pela qual o autor sublinhou que Palha de Arroz não é apenas um romance para entretenimento, mas também um ato de denúncia, uma crítica social e política de uma época de "fogo", na qual aquela gente esteve submergida, e ele como cidadão consciente de seus direitos, através de sua arte grita em prol dos excluídos. A epígrafe do livro é também um trecho da obra, onde o autor notifica através do protagonista que os dois primeiros versos são de autoria de Castro Alves:
"Dorme cidade maldita,
Teu sono de escravidão".
Sonha com o pobre que grita:
Senhor meu Deus! Daí-me pão! (op. Cit. P.7)
Torna-se perceptível a partir da epígrafe que o autor alterna realidade e ficção de modo que estas se aproximam e se confundem quando fatos e cenários fictícios se travestem de aspectos reais. Considerando que no corpo da obra esta quadrinha figura como o trecho da carta que Francisco Clemente Ponciúnculo (vulgo Pau de Fumo) escrevendo ao negro Parente, faz referência a atuação do estudante que realiza uma pesquisa para escrever um romance. "Os dois primeiros versos são de Castro Alves. Os dois últimos são dele. Que tal?!..." (FONTES IBIAPINA, 2007, p.188.)
O autor revela através do seu personagem a sua familiaridade com a obra de Castro Alves, deixando transparecer nas entrelinhas uma espécie de homenagem ao escritor e uma apologia a sua escrita de contestação face a escravatura em favor da abolição.
PAU DE FUMO E CHICO DA BENTA: As duas faces de um homem
O homem é produto do meio em que vive? Essa é uma pergunta que ao longo dos tempos filósofos e estudiosos vem tentando responder. Há quem defenda que ambientes social e culturalmente enriquecidos formam indivíduos não só adaptados à sociedade, mas seres humanos completos, ou seja, profissionais competentes e cidadãos conscientes.
Partindo dessa premissa, pode-se inferir que a exclusão do individuo desse meio socialmente organizado ocasiona desvios de conduta e o transforma em delinqüente, nesse caso o sujeito é inversamente maculado pela ambiente. O filósofo francês Jean-Jacques Rousseau defendeu essa tese quando criou o mito do bom selvagem - o homem em seu estado natural, não contaminado por constrangimentos sociais.
O protagonista de "Palha de Arroz" que inicialmente vive o drama de um marginal comum fugindo da polícia é nomeado de modo pejorativo pelo delegado por "Pau de Fumo", desde o primeiro furto a alcunha substitui o seu verdadeiro nome.
Certo dia, já fazia tanto tempo que não se lembrava mais nem quando (só como e onde), Chico da benta morreu e Pau de Fumo veio ao mundo. Primeiro roubo. Primeira prisão. Depois das sovas, o Comissário dissera: __ Tragam-me esse Pau de Fumo pra ouvir um padre-nosso!" (FONTES IBIAPINA, 2007, p.114)
Entretanto ao longo da trama o Pau de Fumo se revela como o cidadão Chico da Benta e apresenta traços característicos do homem puro, a sucessão de desventuras o transforma em ladrão, sendo um construto da nefasta realidade em que vive, oscilando entre o cidadão e o marginal.
O personagem Chico da Benta era uma promessa de sucesso na sociedade, entretanto, com o falecimento dos pais, sem estrutura familiar e financeira, o cidadão, o estudante exemplar não conseguiu galgar espaço na sociedade, discriminado, excluído pelo sistema, cai na vala da miséria e não conseguiu manter-se digno.
Neste contexto surge outra face de Chico da Benta: Pau de Fumo; fruto da desventura, o ladrão barato que rouba única e exclusivamente, para sustentar a família, para não deixá-la perecer nos braços da fome; isto, sem desumanizar-se completamente, pois, ainda assim, conseguia manter alguns resquícios morais e intelectuais de Chico da Benta. Conforme recorte:
[...]__ Nada disso. Quando não encontro serviço, peço. Quando não encontro quem me dê nada pra comer (que infelizmente é o que sempre acontece), roubo. Aí sim! ... É instinto de conservação, caso de necessidade. Mas não mato o próximo. Não nasci para ser criminoso. Sou humano, negro velho. Tenho cabeça pra pensar. Estudei.
__ E de nada lhe adiantou esse tal de estudo. Só vive na pedra e dela não passa.
__ Tem razão. Mas não mato. (FONTES IBIAPINA 2007, p 77)
Ao mencionar os resquícios intelectuais de Chico da Benta, faz-se necessário sublinhar que este, apesar de transitar entre o submundo do crime e as venturas e desventuras de um trabalhador braçal, era de fato um intelectual, visto que, dissertava sobre fatos do cotidiano mesclando-os com idéias dos mais diversos pensadores e por vezes deixou claro que era um homem letrado:
Olhe, negro velho, eu fui estudante não só de ginásio, não. Li quase toda aquela biblioteca do Estado. Se eu fosse explicar para você o que sei sobre a Origem das Espécies, com base em Darwin e Haakel, [...] Li e reli A Ética e A Política de Aristóteles - para mim, o maior de todos eles. Também a República de Platão, onde o militarismo é tão denso e compacto, que não se sabe nem quem é pai da criança filha de mulher de oficiais. Aliás, aí não concordo, porque ele acha que a fraternidade entre os cidadãos para ser perfeita é preciso acabar com a instituição da família. E, para mim, a família é o esteio social. Cada família é uma cidade, um estado em miniatura. Estudei Spinoza que, partindo de definições e postulados fundamentais (baseado em Descartes), chega a construir um verdadeiro edifício de deduções sociológicas, intelectuais e científicas. [...] Hoje não sei quase nada do que aprendi. Pois é. O professor Cagliostro achava que eu era uma revelação. O padre José Luiz me chamava de gênio. (Hoje eu dobro a esquina pra não me encontrar com um deles). (FONTES IBIAPINA, 2007 p. 75-76)
O conflito fica assim estabelecido, o cidadão Chico da Benta queria ser apenas um trabalhador honesto, apesar da gama de conhecimentos que deixava transparecer ao longo dos seus diálogos, não conseguia uma boa colocação no mercado de trabalho, o seu passado o condena, então ao encontrar uma chapa de carregador vislumbra a possibilidade de conseguir o sustento de sua família dignamente.
Nesse trânsito entre o bem e o mal fica explícita a morte do Pau de Fumo, a partir de então o Chico da Benta tomaria o seu devido lugar, e ao recobrar a lucidez imagina o deu futuro como homem digno e honrado que fora antes, logo não precisaria mais viver no submundo do crime.
Nunca mais baixaria os dez dedos das mãos no alheio! Nunca mais que arriscaria a vida dentro do poço da Usina. Nunca mais que seu lombo serviria de lixa! Nunca mais que seu espinhaço lixaria cassetetes e sabres daquela cambada sem-vergonha! Adeus poço da Usina! Adeus cassetetes! Adeus sabres e faxinas. Adeus tudo que de ruim na vida dum pobre ladrão pode existir. Adeus tudo, que Pau de fumo morreu. Está em glória. O célebre moleque da margem do Parnaíba suicidara-se no meio da cidade, no meio da rua, com uma chapa de carregador nas mãos. Tanto que a polícia pelejou para matá-lo! Estava satisfeito. Fez aquilo que o povo vilmarino pelejou e não conseguiu. Aquilo sim!... era que era ser vingança! Matou-se, deixando a polícia com água na boca. (FONTES IBIAPINA, 2007, p.114
Neste espaço Chico da Benta comemora a morte de Pau de Fumo, embriagado e com a chapa nas mãos em devaneios ele relembra a sua vida antes desta ser tomada pelo vilão. Então o lampejo de memória leva-o ao tempo em que sua esposa (Genoveva), era uma senhora dona de casa cumpridora de todos os afazeres domésticos. "Já agora Pau de Fumo morria sem deixar a mesma herança para Chico da Benta. Genoveva estava acabada. Um caco de gente. Um cadáver ambulante. Louca varrida." (Op cit. p.115).
"O negro bêbado, com a chapa às mãos e aqueles pensamentos malucos na cabeça. E com uma vontade azeda de correr pelas ruas gritando desesperado:
__ Pau de Fumo morreu! Pau de Fumo morreu! Chico da Benta nasceu de novo! Carregador 208! Dia santo do negro Pau de Fumo! Dia santo do negro Chico da Benta! Carregador 208! Pronto, patrão! Às suas ordens! Um criado para servir-lhe! Carregador 208! Pronto, patrão!" (Op cit. p. 116)
Em meio à comemoração o protagonista explicita que a orfandade o encontrou quando cursava o quarto ano ginasial, porém nunca alguém tinha lhe dado uma oportunidade, nem mesmo em cargos inferiores. Somando a isso ele havia passado em três concursos públicos, dos quais em dois conseguira o primeiro lugar e sempre foi preterido. "E nunca que fui nomeado, por que em todos havia rabo-de-saia no meio. No último [...], uma dona da bunda grande, classificada em décimo terceiro lugar dentre os quinze [...] foi o primeiro candidato nomeado." (FONTES IBIAPINA, 2007, p. 167/168).
O limbo social no qual o negro "chapa" vive imerso despontou para o Chico da Bento com pórtico para ressurreição, uma vez que o ladrão estava de bom grado chamando-lhe à vida.
Nesse transe o personagem revela traços que ultrapassa o limite do social e adentra o âmbito da psicologia, haja vista, que ao confundir os papéis por ele desempenhados na sociedade, ou à margem desta confunde-se com outra pessoa, e apregoa a morte deste.
Estaria o Chico da Benta possuído pelo Pau de Fumo quando transgredia a lei roubava? Seria esse um fenômeno sobrenatural, loucura, ou fuga de si mesmo por não suportar o peso da situação que a vida lhe impeliu? Como explicar essa dualidade de personalidade?
No âmbito da psicologia esse fenômeno é entendido como transtorno, denominado especificamente como "transtorno dissociativo de identidade ou transtorno de personalidade dissociativa é comumente chamado de transtorno de dupla personalidade".(OLIVEIRA, 2009 p.1 ).
É comum no ramo da Psicologia identificar as causas que delineiam um determinado transtorno, pois, partindo do conhecimento da origem do problema é que se pode trilhar o caminho da superação deste.
Chico da Benta um sujeito de boa índole se transforma em Pau de Fumo, um ladrão de pequenos furtos. Uma, senão várias razões motivaram tal transformação. Neste espaço torna-se imprescindível analisar o curso dessa metamorfose.
Considerando Oliveira (2009), a dupla personalidade não está relacionada a efeitos fisiológicos provocados por uma substância alucinógena, por amnésias ou ainda por comportamento confuso durante uma intoxicação alcoólica, ou por uma condição médica geral.
Neste contexto seria um equívoco atrelar as duas faces desse mesmo homem à bebida, similares ou problemas de saúde. O enredo explicita a causa do transtorno do protagonista:
"A cada dia mais as aperturas perigando para o lado do negro. De maneira alguma, por pequeno que fosse, ganho nenhum aparecia. Os filhos doentes. Além do mais, passando fome. Ceição também doente. Pelo que via, pelo que sentia, por tudo o mais, Chico da Benta precisava mesmo de morrer. Já que não podia sustentar a família, necessário seria ceder o lugar a outro.(FONTES IBIAPINA, 2007, p.195 - 196).
Depreende-se, portanto, que não mais suportando a dor de ver a miséria na qual estava imersa toda a sua família, o homem foge em busca de soluções, não uma fuga concreta, mas uma fuga psicológica.
O seu desejo não consistia em abandonar sua família e sim permanecer por perto em outra vida, outra pessoa, alguém que de certa forma poderia prover o sustento da família mesmo que através de atos ilícitos. Atos esses não compatíveis com o caráter ilibado de Chico da Benta.
Para Oliveira (2009), um trauma em uma pessoa pode provocar uma dissociação da memória, quer seja do lugar ou das circunstâncias, resultando em uma defesa temporária para se esquivar da dor do trauma ou do medo advindo da situação, em alguns casos, pode ocorrer uma lapso de memória em torno da experiência.
O processo traumático pode produzir alterações na memória, especificamente nas pessoas que dissociam os seus sentidos da história pessoal em decorrência dos sentimentos de identidade afetados.
No transtorno de dupla personalidade ou de personalidades múltiplas a maioria dos médicos acredita que existe dissociação em um continuum de gravidade.
Esse continuum reflete uma ampla gama de experiências e / ou sintomas que a pessoa não pode suportar dissociando-se cada vez mais de sua identidade.
[...] Essa dissociação crônica provoca perda de contato e de identidade, incapacidade da função de integração e prejuízos de consciência. (OLIVEIRA, 2009, p.1).
O recorte acima traduz explicitamente a causa da migração do protagonista "do mocinho" ao "bandido" com via única de afastamento da realidade vil. Neste contexto pode-se considerar que tal afastamento se configura como mecanismo de defesa, pois o homem atormentado queria viver uma situação diferente daquele em que estava imerso.
Negro Júnior, Palladino-Negro e Louzã (1999) discorrendo sobre esses transtornos numa esfera conceitual, classificam como experiências dissociativas: Dissociação como módulos/sistemas não-conscientes; Dissociação como alteração na consciência em que ambiente e Eu se desconectam; Os transtornos dissociativos em perspectiva e Dissociação como mecanismo de defesa,
Sobre transtorno dissociativos enquanto mecanismos de defesa vale ressaltar:
Para a teoria psicanalítica, esse mecanismo é considerado proposital, ainda que inconsciente, podendo ser desencadeado por eventos específicos ou se apresentar como traço de personalidade. Segundo Pierre Janet, o fenômeno não teria origem proposital ou funcional, mas surgiria quando o indivíduo experiência emoções "veementes" (inclusive terror) que levariam ao estreitamento do campo atencional e desorganização das funções usuais de integração das informações na consciência. Assim, experiências não integradas na identidade e memória de longo prazo do indivíduo se tornariam "idéia fixas" simples ou identidades alternativas complexas1,5 ( NEGRO JÚNIOR, PALLADINO e LOUZÃ, 1999 p. 1).
O trânsito do protagonista entre as duas identidades se constitui em matéria complexa para o estudo da psiquiatria, da psicanálise, da psicologia, da sociologia e demais ciências humanas.
O protagonista Chico da Benta tinha plena consciência dos dois seres que habitavam seu âmago e não se deixava confundir, visto que, ao ser chamado de "Pau de Fumo" por Parente, ele imediatamente corrigia o equívoco do amigo, que não conseguia distinguir um do outro, conforme explicita o recorte:
"- Mas, mudemos de assunto. Quero conversar é com este Pau de Fumo que quando precisava de mim não vinha com estes desaforos. _ Sim. Não nego. Mas quem dormia em sua casa era Pau de Fumo. Hoje eu sou Chico da Benta. Pau de Fumo morreu no meio da rua com uma chapa de carregador nas mãos." (FONTES IBIAPIANA, 2007, p.153)
Chico da Benta, em um de seus devaneios de intelectual, esboçado no diálogo com Parente - que por sua vez não entendia nada do que Chico falara, e o acusara de bebedeira ou loucura - explicita:
"__ Aquilo que não é loucura, Parente, não é positivamente humano. Tudo aquilo que é apenas normal, digo e afirmo, é apenasmente também animal. Certo escritor (aliás, grande escritor) certa vez disse: "O mundo está cheio de loucos e quem não os quiser ver que se tranque no quarto e quebre o espelho". Já eu tenho este outro pensamento: o homem tem de ser um dia uma de duas coisas - ou um Deus, ou um Diabo. Sendo o homem um Deus, é ser louco por só querer o que lhe seja conveniente e necessário. Sendo um Diabo, é um louco também, pelo mesmo motivo. (FONTES IBIAPINA, 2007, p.164/165.)
Neste contexto o autor justifica o porquê da dupla personalidade do protagonista, ao analisar a sociedade, e o homem como produto do meio. Sábia e filosoficamente Chico da Bento conclui que a melhor maneira de sobreviver nesse mundo de tantas desigualdades é mesclar esses dois seres - Deus e o Diabo - num só. Partindo desse pressuposto, subtende-se que no coração puro de Chico da Bento brota então o marginal Pau de Fumo. E assim se configura o protagonista do romance Palha de Arroz - Chico da Benta e Pau de Fumo: as duas faces de um mesmo homem.
Diante do exposto pode-se inferir que Fontes Ibiapina sinaliza algumas vertentes nas quais se poderia explicar o transtorno dissociativo do seu personagem, duas se destacam entre as demais: a psicológica e a social. Na psicológica pode-se deduzir que o transtorno é decorrente do trauma advindo da fome e da miséria dele e de seu povo. Na vertente social pode-se compreender que Pau de Fumo é de fato o produto do meio, que oscila entre Deus e o demônio, ou seja, é o individuo que a sociedade moldou de um órfão. Entretanto é na inventividade libertária da literatura que o enredo por si só se explica.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O contato com o romance Palha de arroz nos transporta paradoxalmente a duas dimensões, a primeira e mais importante à complexa inventividade literária de Fontes, ao colocar dois personagens em um só, estabelecendo assim um conflito entre o bem e mal. A segunda o aspecto reflexivo do enredo tecido com a tênue linha da realidade marcada pela miséria, capaz de transformar um cidadão em um marginal, e atirá-lo definitivamente ao limbo social.
As duas perspectivas se aproximam e se afastam abrindo espaço para complexos estudos que extrapolam os limites da literatura pura e adentram o âmbito das psicologia, da sociologia e demais ciências sociais. Porém, é na magia literária que o enredo por si só se explica e se completa.
No campo da psicologia o drama vivido pelo protagonista pode ser explicado como transtorno dissociativo, cuja origem pode advir do mecanismo de defesa do ego de um ser torturado pela realidade circundante.
Portanto pode-se inferir que a obra em questão, além de se constituir em imensurável contributo literário, ainda cumpre o importante papel de suscitar reflexões e ações na esfera social.
A obra de Fontes Ibiapina é um mergulho no que há de melhor na arte literária e simultaneamente uma denúncia da exclusão social. Apesar de retratar a Teresina dos anos quarenta, o livro Palha de Arroz é completamente contextualizado e traduz por excelência a conjuntura atual.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BIBLIA. Português. O novo testamento de nosso senhor Jesus Cristo. Tradução de João Ferreira de Almeida. Campinas SP: Os Gideões internacionais no Brasil: 1994, 1995.
IBIAPINA, Fontes. Palha de arroz. Oficina da Palavra. 5ª edição. Teresina, 2007.
LIMA, Luiz Romero. Literatura piauiense. 2ª edição. Teresina: Gráfica Ibiapina 2001
MOURA, Francisco Miguel de. Literatura do Piauí. Gráfica Banco do Nordeste.Teresina, 2001.
MORAES, Herculano. Visão histórica da literatura piauiense -. 4ª edição. Teresina, Comepi, 1997. (tomo III)
RODRIGUES, Abdenaldo; ARAGÃO, Adriano Lobão. Folclore e sociologia em Fontes Ibiapina. Disponível em: . http://www.revistaamalgama.hpg.ig.com.br/ibiapina_artigo_1.htm. Acesso em 03 de julho 2009 às 22h 52min
SANTOS, Gisele do Rocio Cordeiro Mugnol; MOLINA Nilcemara Leal; DIAS, Vanda Fattori. Orientações e dicas práticas para trabalhos acadêmicos. Curitiba, Ibpex 2007. Disponível em. . http://ava.grupouninter.com.br/claroline176/claroline/learnPath/navigation/viewer.php Acesso em 11.06.09 às 18h32min.
© 2014 / 2024 - Todos os direitos reservados: leiturartes.com.br